quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cotas: uma medida emergencial

Oito anos após a implantação do polêmico sistema de cotas raciais nas universidades, o que mudou na educação pública do Brasil para a equidade do ensino no país?


Wilde Barreto
A proposta de reservar um percentual de vagas para negros nas universidades brasileiras começou a ser posta em prática em 2001. No discurso, além de reparar diferenças históricas, as cotas supririam, de forma emergencial, a inoperância do ensino público que acabou por criar um abismo entre negros e brancos. Oito anos se passaram. A melhoria na educação básica caminha a passos lentos. Mesmo contando com mais planejamento, ainda há muito que fazer para superar os anos de negligência com escola pública.
Para entender a relação entre as cotas e a educação pública é preciso compreender a Lei 3.627, votada pelo Congresso Nacional, em 2004. O sistema reserva 50% das vagas de universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas. Entretanto, esse percentual deve ser preenchido de forma proporcional ao número de pretos, pardos e indígenas que vivem no estado da federação onde está instalada a instituição de ensino superior, levando em consideração dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que uma universidade como a Federal da Bahia deve ter em média 73,2% de cotas para afrodescendentes, dentre os 50% reservados à escola pública, como sugere o censo demográfico.
Em 2007, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) avaliou estudantes das primeiras séries no Brasil. O resultado, que deixou muito a desejar, mostra que, em uma escala de 0 a 10, as escolas públicas brasileiras alcançaram a média 4. Entretanto, o índice é calculado com base em taxas de aprovação e abandono escolar, dados que professores confessam ser maquiados, como sugeriu um protesto de educadores no Rio de Janeiro, há dois anos. Outros indicadores para o Ideb são duas avaliações nacionais, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e a Prova Brasil, ambas criadas em 2007, em meio a um plano de 47 atos, lançado como o “PAC da educação”.
O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) é uma iniciativa ousada do Ministério da Educação (MEC) para transformar o ensino público desde sua base. Mas, segundo o ministro da pasta, Fernando Haddad, somente em 2022, o país alcançará a principal meta do plano, a de equiparar o ensino público ao particular, atualmente com a média 6. Isso significa que até bicentenário da independência do Brasil, a utilização do sistema de reserva de cotas continuará sendo um mal necessário para inclusão de pretos e pardos nas universidades.
Em 2000, um ano antes das instituições de ensino superior adotarem a reserva, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) estimou que apenas 16% da população negra, entre 18 e 24 anos, estava matriculada em universidades. Outra pesquisa, feita pelo IBGE, mostrou que entre 1995 e 2005, o percentual de brasileiros que se declararam negros e pardos no ensino superior subiu de 18% para 30%. O aumento aconteceu principalmente após a adoção dessa política pública afirmativa, em 2001, ano da Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo.
Para o Ipea a qualidade da educação e o acesso à universidade implicam diretamente na distribuição de renda da população. Em 2002, a diferença de rendimento de um trabalhador branco para um negro, na faixa de 24 a 26 anos, era de 55%. A mesma pesquisa, em 1990, detectou, entre trabalhadores de 48 e 50 anos, um desequilíbrio alarmante de 130%.
Esses números reforçam o discurso de movimentos sociais na busca de reparação por meio do acesso a escola. Mesmo tendo se passado mais de cem anos da abolição da escravidão, negros e pardos ainda sofrem o reflexo da omissão do Estado, no que tange a inclusão social. Além de ter sido o último país a declarar o fim do regime escravocrata, o Brasil não foi capaz de profissionalizar nem educar os recém libertos.
O Estado brasileiro pós-abolição constituiu uma estrutura sociopolítica que dificultou a ascensão social e a cidadania dos negros. O exemplo mais evidente disso revelasse na substituição da mão de obra escrava por imigrantes europeus. O discurso, de que trabalhadores estrangeiros modernizariam a produção agrícola do país, apenas disfarçava a estúpida intenção de “branquear” a população brasileira.
Mudanças através da educação
O mundo está repleto de exemplos de países que avançaram a partir de investimentos na educação. Mas, passados mais 500 anos de história, essa é a primeira vez em que o Brasil se compromete com o planejamento macro do ensino para alcançar o desenvolvimento. O PDE abrange questões essenciais como a distribuição de recursos, a antecipação da entrada da criança na escola, além da valorização do magistério, com incentivos para a formação superior e a criação de um piso salarial nacional para os professores.
Ainda hoje, diversos municípios brasileiros, maioria no Norte e Nordeste, pagam a seus professores um salário mínimo. Em salas de aula sem infraestrutura, os mestres tentam alfabetizar até 40 alunos por vez, em uma única turma. Em outros casos, o educador dá aulas a duas ou três séries, simultaneamente, na mesma sala. A tarefa árdua, agora, será recompensada com um salário de R$ 950 para 40 horas semanais. A medida deve beneficiar 40% dos profissionais com o ensino médio, a partir de 2010.
A valorização do professor é um ponto crucial para a melhoria do ensino básico. Porém, o país ainda possui 600 mil professores, na rede pública, sem nenhum tipo de formação superior, segundo dados do MEC. O ministério deve investir R$ 1,9 bilhões, até 2011, para colocar 331 mil desses profissionais na universidade.
Em outubro deste ano, o Plano de Formação de Professores disponibilizou 80 mil bolsas para licenciatura. Em maio, 50 mil docentes de escolas públicas já haviam sido selecionados para cursos presenciais e à distância em instituições federais, estaduais e particulares. Apesar de serem gratuitas, as vagas oferecidas pelo governo não são totalmente preenchidas, a dificuldade de deslocamento é tido como o maior impasse.
Mais tempo na escola
A busca do equilíbrio entre o ensino público e privado, também levou o governo a antecipar a entrada das crianças na escola. Em 2010, será obrigatória a inclusão do 9° ano escolar. Isso significa que o aluno começa a estudar com seis anos, não mais com sete como era antes, e concluirá o ensino fundamental (1° ao 9°) aos 14 anos. Para o MEC a medida vai oferecer maiores condições de aprendizagem. Além desse item, consta ainda nas metas do PDE a alfabetização de meninos e meninas até os oito anos de idade, faixa etária em que devem saber ler e escrever.
Mas, a alfabetização para esses pequenos brasileirinhos não tem a face tão bela quanto aquelas pintadas em escolas particulares. Muitas crianças veem na sala de aula uma saída para a fome. A merenda escolar é uma de suas poucas refeições diárias e ainda assim a corrupção impede que ela chegue aos estudantes.
No início de 2009, o governo federal bloqueou o repasse de verbas da merenda para 895 municípios por falta de prestação de contas. Cada cidade possui um Conselho de Alimentação Escolar para fiscalizar os gastos, alguns encontraram irregularidades e outros não puderam gerar relatórios por estarem com mandatos vencidos. Em São Paulo, por exemplo, um escândalo envolvendo a compra de alimentos para os alunos levou a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a denúncia do Ministério Público Estadual de desvio de recursos para financiamento de campanhas políticas.
E se a corrupção da merenda é uma prova do desrespeito com a educação de milhões de crianças. O que dizer do atentado a vida nos transportes desses estudantes? No município de Várzea Alegre, no Ceará, a morte de um estudante, atropelado pelo caminhão que o transportava, junto com seus colegas, teve repercussão nacional, em 2001, e alertou para o risco que correm os alunos de escolas públicas do interior do Brasil.
Existe, atualmente, uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Pró Escolar, para que municípios e estados financiem ônibus, microônibus e embarcações para o transporte de alunos da zona rural. No último ano, foram disponibilizados R$ 300 milhões através da parceria do MEC com o BNDES. Para garantir a segurança, é exigido que veículos e barcos tenham certificação garantida pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro).
Mas, as ações de desempenho, como as citadas nessa reportagem, não teriam efeito algum sem a fiscalização dos brasileiros. O polêmico sistema de cotas trouxe à tona as mazelas da educação pública, desprezada por camadas da sociedade que encontraram no ensino privado uma fuga. Os que não tinham como pagar por uma escola para os filhos, ou seja, cidadãos no papel, porém, sem voz nem representatividade, permaneceram a sorte do destino.
Somente, agora, quando crescem os níveis de violência, que é reflexo do descaso, e diminuem as oportunidades dos que resolvem tudo com dinheiro, a educação ganha o espaço merecido no debate popular. Em 2005, educadores, intelectuais, representantes da sociedade civil, organizações sociais, gestores públicos, e setores da iniciativa privada, criaram o Movimento Todos Pela Educação. O objetivo é contribuir para que os brasileiros tenham uma educação de qualidade. Para isso, os participantes do movimento, sugerem alternativas, fiscalizam gastos e cobram o empenho governamental, na esperança de que, um dia, todos os estudantes deste país possam ser avaliadas apenas pelo seu conhecimento, sem recorrer ao auxilio das cotas.